segunda-feira, agosto 06, 2007

A ENCANAÇÃO

“Ilustríssimo e Exmo. Senhor Pinto Coelho,
digno director da Companhia das Águas de Lisboa e digno membro do Partido Legitimista.
Dois factores igualmente importantes para mim me levam a dirigir a V. Ex.ª estas humildes regras: o primeiro é a tomada de Cuenca e as últimas vitórias das forças carlistas sobre as tropas republicanas, em Espanha; o segundo é a falta de água na minha cozinha e no meu quarto de banho.
Abundaram os carlistas e escassearam as águas, eis uma coincidência histórica que deve comover duplamente uma alma sobre a qual pesa, como na de V. Exª, a responsabilidade da canalização e a do direito divino.
Se eu tiver a fortuna de exacerbar até às lágrimas a justa comoção de VExª, (...)que essas lágrimas benditas, de industrial e de político, caiam na minha banheira!
E, pago este tributo aos nossos afectos, falemos um pouco, se V. Ex.ª o permitir, dos nossos contratos.
Em virtude de um escrito, devidamente firmado por V. Exª e por mim, temos nós – um para com o outro - certo número de direitos e encargos.
Eu obriguei-me para com V. Ex.ª a pagar a despesa de uma encanação, o aluguer de um contador e o preço da água que consumisse.
V. Exª, pela sua parte, obrigou-se para comigo a fornecer-me a água do meu consumo. V.Exª fornecia, eu pagava. Faltamos evidentemente à fé deste contrato: eu, se não pagar, V Exª, se não fornecer.
Se eu não pagar, V.Exª faz isto: corta me a canalização. Quando V. Exª não fornecer, o que hei-de eu fazer, Exmº Senhor?
É evidente que, para que o nosso contrato não seja inteiramente leonino, eu preciso no caso análogo àquele em que V.Exª me cortaria a mim a canalização, de cortar alguma coisa a V.Exª …
Oh! E hei-de cortar-lha!.. Eu não peço indemnização pela perda que estou sofrendo, eu não peço contas, eu não peço explicações, eu chego a nem sequer pedir água!
Não quero pôr a Companhia em dificuldades, não quero causar-lhe desgostos, nem prejuízos! Quero apenas, esta pequena desafronta, bem simples e bem razoável, perante o direito e a justiça distributiva: quero cortar uma coisa a V. Exª!
Rogo-lhe, Exmo Senhor, a especial fineza de me dizer, imediatamente, peremptoriamente, sem evasivas, nem tergiversações, qual é a coisa que, no mais santo uso do meu pleno direito, eu possa cortar a V. Exª.
Tenho a honra de ser. De V. Exª Com muita consideração e com umas tesouras.
(a)-Eça de Queirós”