segunda-feira, dezembro 19, 2005

Tudo ou nada

1. Na noite de 4 de Dezembro de 1980 morreu Francisco Sá Carneiro. E lembro-me, como se fosse hoje, do choque provocado pela notícia dada na televisão e da posterior comunicação ao país feita por Freitas do Amaral, vice-primeiro-ministro de então no Governo da Aliança Democrática. E de como este tentou, de boa fé e atendendo ao delicado momento politico, aquietar-nos com a versão do acidente em Camarate. Aliás, essa tese de acidente foi praticamente imposta desde o princípio. Durante algum tempo, pouco diga-se de passagem, acreditei, mas hoje estou convencido que Sá Carneiro, Adelino Amaro da Costa e os restantes ocupantes do Cessna foram assassinados.
2. Vinte e cinco anos depois, após tantas versões contraditórias, dezenas de inquéritos e livros, da tragédia sobrevive em mim essa convicção inabalável. O afastamento de investigadores, o autismo perante peritos internacionais, as palavras de Lee Rodrigues ouvidas por várias testemunhas, a nitroglicerina, as partículas de metal, o buraco na fuselagem, as suspeitas da existência de um fundo que serviria o tráfico de armas investigado por Amaro da Costa e um sem-número de factos, situações e depoimentos deveriam impedir que este caso prescrevesse em situação alguma.
3. Sá Carneiro ousou desafiar por dentro a prometida “Primavera Marcelista”, através da ala liberal. Ousou provocar o regime e o intocável Estado Novo. Ao pedir o restabelecimento de liberdades e garantias, a liberdade de expressão e a auto-determinação para os povos das ex-colónias. Renunciou ao mandato em 1973, quando percebeu que estava na Assembleia Nacional de então só para enfeitar. Sá Carneiro foi o pai-fundador do PPD e o seu militante número um. Foi o líder que conduziu o partido à primeira vitória eleitoral. Nos 11 meses em que foi primeiro-ministro contribuiu corajosamente para acabar com o Conselho da Revolução, lucidamente para limpar a Constituição da sua canga comunista, firmemente para enfrentar a reforma agrária e as nacionalizações gonçalvistas.
4. Sá Carneiro era de antes-quebrar-que-torcer. De que o último exemplo em vida é ter hipotecado a permanência como primeiro-ministro à vitória de Soares Carneiro nas eleições presidenciais. Enfrentou sem tibiezas as convenções sociais, morais e religiosas para viver com quem amava. Não se deixava impressionar e não tinha medo. Intuitivo, sabia jogar na antecipação, com sentido táctico e estratégico da política. Tinha pressa, talvez em virtude da sua história clínica recente. A sua fixação na ideia de uma maioria, um governo e um presidente continua a ser hoje incompreendida, mas deveu-se tão só ao pendor claramente presidencialista do general Ramalho Eanes. E as horas do seu último dia são passadas, como toda a sua vida política, numa vertigem contra o tempo.
5. Conheci pessoalmente Sá-Carneiro quando fui eleito presidente da Associação Académica em 1979. Veio a Coimbra, onde falámos a sós e em local recatado, longe de olhares politicamente inconvenientes. Lembro o que me disse: a vitória, pela primeira vez, de uma lista reformista na Academia, depois de luta tão acesa e difícil, era a prova de que o país estava a mudar através das novas gerações e que a sua vitória em eleições legislativas se aproximava. Como aliás se veio a verificar no ano seguinte. Falou-me também de forma crítica de Mota Pinto e do seu Governo de iniciativa presidencial. Reafirmei-lhe a minha admiração pessoal e política, mas não abdiquei de vincar a proximidade afectiva e coimbrã a Mota Pinto. Aliás, os destinos de Mota Pinto e Sá Carneiro são feitos de encontros e desencontros. Mota Pinto ficará ligado ao núcleo fundador e programático do PPD, à liderança do Grupo Parlamentar na sempre recordada Constituinte e à história das duas grandes cisões vividas no PPD. A última reaproximação entre os dois deu-se exactamente como mandatário nacional de Soares Carneiro. Há quem considere que os desencontros se deveram à competição pela liderança, às circunstâncias de origem e percurso de cada um, à forma de viver a política e aos que os rodeavam. Em verdade, eles convergiram finalmente na tragédia da morte que ceifou prematuramente o seu caminho político. Mas antes já haviam convergido no amor a Portugal, na paixão com que se dedicaram à política - mas com “as chaves do carro sempre no bolso” - e ao seu PPD, no arrebatadamente pelas grandes causas e na vontade férrea de antecipar o futuro.
Foram dois homens que fizeram política como eu gosto: jogando no tudo-ou-nada, por convicções.

Maló de Abreu
* Artigo publicado no Diário de Coimbra