quarta-feira, novembro 16, 2005

Se bem me lembro*

1. Se bem me lembro, são palavras do rei de copas em Alice no País das Maravilhas: “Se o que dizes não tem sentido, isso poupa muito trabalho, porque não precisamos de encontrar sentido nenhum”. Hoje nada se compra que não traga instruções, mas, lamentavelmente, o que é mesmo importante na vida vem sempre sem o correspondente manual. Não há guião infalível para se ser um homenzinho. Antes, o que parecia era. Hoje, a realidade são caixas de bonecas russas em que cada história tem outra e mais outra história por dentro. O que ontem era importante, hoje é insignificante e amanhã dirão que nunca fez sentido.
2. Se bem me lembro, Corto Maltese disse a Rasputine: “A amizade é incompatível com a verdade. Só o diálogo mudo entre inimigos pode ser fecundo”. Hoje, de inimigos nem falar. Porque é suposto não existirem, deselegante evidenciar-lhes os defeitos e de mau gosto saber-se de ódios. Então, fulanizar nem pensar. É mais urbano escrever que se deprecia a sua estratégia, mas sem nada de pessoal. Vivemos de consensos idiotas que reduzem reles inimigos sem ódio a meros adversários de ocasião. Assim sendo, os inimigos nunca o são. Só que, incapazes de inimigos, não somos necessitados verdadeiramente de amigos.
3. Se bem me lembro, Afonso I de Aragão respondeu a um seu criado, depois deste contar que num sonho o rei lhe ofertara uma pilha de ouro: “Não acredites mais em sonhos; eles mentem”. Tempos houve em que conhecíamos toda a gente do prédio, da rua e do bairro. Mas, hoje, vivemos numa aldeia global da comunicação e sabemos ao segundo o que se passa nos antípodas. Curiosamente, quanto mais entramos na vida de longínquos personagens, menos conhecemos o vizinho do 5.º esquerdo ou o colega de trabalho. E somos absolutamente ignorantes de nós próprios. Hoje, quanto mais comunicamos, menos temos para dizer uns aos outros e nada para sonhar.
4. Se bem me lembro, Shakespeare disse em “Júlio César”: “Existe uma maré nos assuntos humanos, que, aproveitando-se o fluxo leva à fortuna; omitida, toda a viagem de suas vidas está destinada a dar em bancos de areia e misérias”. Em tempos, era suposto os pais sacrificarem-se pelos filhos, os políticos pela coisa pública e cada um pela sua família. Ninguém se sentia bem quando os próximos passavam mal. Hoje, o bem-estar individual passou a ser um direito e a felicidade pessoal um objectivo. Mas triste é fazer disto uma justificação para a irresponsabilidade de nos demitirmos da ajuda aos que nos rodeiam. Sobretudo os mais fracos, os doentes e os pobres. Ao acreditar que para atingir a felicidade não importa atropelar quem quer que seja, há quem acabe terrivelmente sozinho e, portanto, definitivamente infeliz.
5. Se bem me lembro, são palavras de León Tolstoi na sua fábula do frangote vaidoso: “Olhem para mim, todos vocês. Sou um frangote vitorioso. Não há no mundo frangote mais forte do que eu”. Ora, algo do tipo Prozac devia permitir ao infeliz concluir que é apenas insatisfeito. Esta quase tranquilidade, uma vez por outra, vivencia-se de facto. Mas, depois, os pequenos contratempos do dia-a-dia fazem voltar a angústia e sobretudo os pensamentos de que somos insuficientemente amados e apreciados. Tudo o que nos acontece fica muito aquém das expectativas. E então, embrulhados na insatisfação, conclui-se e proclama-se que com uma última oportunidade se seria eternamente agradecido, amigo, atento e feliz. Ou mesmo imortal.

(Maló de Abreu)

(*) Tendo como base o livro de Isabel Leal - a realidade já não é o que era.
Artigo publicado esta semana no Diário de Coimbra