terça-feira, fevereiro 22, 2005

OUTRA

Da alma, e de quanto tiver,
Quero que me despojeis,
Contando que me deixeis
Os olhos para vos ver.

Cousa que este corpo não tem
Que já não tenhais rendida;
Depois de tirar-lhe a vida,
Tirai-lhe a morte também.

Se mais tenho que perder,
mais quero que me leveis,
Contando que me deixeis
Os olhos para vos ver.

(LUÍS DE CAMÕES)

3 comentários:

Anónimo disse...

Este marujo(a)(?) felizmente dá-nos poesia para descansarmos de tanta marretada política.
Abençoado(a)!!!

Ima disse...

Aqueles claros olhos que chorando
Ficavam, quando deles me partia,
Agora que farão? Quem mo diria?
Se porventura estão em mim cuidando?

Se terão na memória, como ou quando
Deles me vim tão longe de alegria?
Ou se estarão aquele alegre dia
Que torne a vê-los, na alma figurando?

Se contarão as horas e os momentos?
Se acharão num momento muitos anos?
Se falarão com as aves e cos ventos?

Oh, bem-aventurados fingimentos,
Que nesta ausência tão doces enganos
Sabeis fazer aos tristes pensamentos!

Luis de Camões

Anónimo disse...

O olho direito, ou Soneto perplexo

A vitória do tolo é um mistério sacral
e já arranquei mil vezes meu olho direito,
mas na órbita vazia resplandece, igual,
a glória incompreensível do idiota perfeito.

"Sim, sim; não, não" – mas o olho que não vê o que vê
diz sim ou não? Senhor, é a Ti que devo olhar
com o olho que não tenho, e ver o que ele crê
haver por trás do que, nas trevas, já não há?

Eu gostaria, sim, de poder extirpar,
junto com o olho, o mundo, mas não sei dizer
se essa sangrenta mágica vai funcionar:

tornar caolho o justo há de retificar
o mal que ele a si mesmo faz ao pretender
trocar o sim por não em vez de o declarar?

Olavo de Carvalho